quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O degradê

 Rio de janeiro, 19 de Agosto de 2020 – Quarta feira

Amanheci com aquela sensação de gratidão. Sensação de que um mundo novo estava nascendo e me proporcionando uma nova chance de viver como eu quero viver. E eu fiquei pensado em como eu quero viver e acabei me perdendo entre os devaneios, quereres e no amanhecer do sol.

Acabei percebendo que os pássaros estavam cantando enquanto eu focava cem por cento no sol nascente. Fiquei um pouco frustrada pois não consegui ver o sol nascer, nem pela janela do meu quarto, nem pela janela da sala, mas depois percebi que independente do sol eu estava presenciando o degrade de rosa, azul e lilás que se formavam nesse amanhecer. Consegui esquecer do sol e me contentar com esse degrade de cores e como um plus, os pássaros cantando.

Fiz um café preto e coloquei dois sachês de adoçante. Eu detesto adoçante no café, mas estou me acostumando. Fico pensado se um dia conseguirei me habituar a tomar café assim ou quem sabe um dia serei forte o suficiente para toma-lo puro. Eu acredito que tem que ter um pouco de coragem e um pouco de maturidade pra isso pois as pessoas que eu conheço que o tomam puro são bem mais velhas e muito sábias. Devaneio meu de novo.

Enquanto eu estava parada em pé na janela do meu quarto praticamente stalkeando o sol, me dei conta de tantas coisas. Tive a sensação de gratidão. Gratidão pelo que eu estava vendo, por essa imagem que por um lado é tão simples e cotidiana e por outro é tão esplendosa e mágica. Mágica porque o céu fica de duas ou três cores diferentes e todas elas se unem, lembrando o esfumaçar das sombras nos olhos quando usamos maquiagem. As cores se completam, não se sobressaem, não diminui a beleza da outra, simplesmente se completam.

Me senti tão grata e ao mesmo tempo estranha. Estranha porque eu raramente admiro esses momentos que eu acho tão bonitos e simples. Me senti estranha também porque eu tenho essa vista já há mais de um ano e nunca havia me permitido admira-la. Me senti estranha como uma ingratidão. Que estranho me sentir ingrata por ter uma vista dessas e ao mesmo tempo me sentir grata pelo menos motivo.

Terminei meu café preto com essa vista linda, me sentindo mais grata do que ingrata e comecei a notar que as cores estavam clareando no céu e as nuvens estavam chegando. Parecia aqueles vídeos que vimos quando o tempo está acelerado, e eu não me lembro o nome disso. Eu fiquei surpresa em poder acompanhar a chegada das nuvens em tempo real pois tinha tanto tempo que eu não fazia isso que parecia algo surreal. Eu só me lembrava dessas imagens de nuvens chegando em vídeos e filmes. Não me lembrava de, em algum momento da vida, ter visto as nuvens assim. Parecia que eu nunca tinha visto aquilo, me senti surpresa, num bom sentido.

Eu achei aquilo tudo tão lindo, o degrade das cores do céu, os pássaros cantando (que eu suponho canto) que decidi filmar este momento. Direcionei a câmera do celular ao horizonte e os pássaros cantando. Percebi que poderia morar neste momento. Todo o resto já não tinha mais minha atenção e eu simplesmente fiquei ali, parada, olhando o céu na expectativa de que alguma outra cor aparecesse.

Percebi que o café já estava no fim e que gravar um vídeo de mais de dois minutos seriam exagero. Desliguei a câmera, olhei mais um pouco para o céu e agradeci mentalmente pela beleza proporcionada naquele momento. Meu estomago roncou logo em seguida.

Abaixei a persiana, que na verdade não sei o nome desse negócio, e fui para a área de serviço soltar o luke que me recebeu com seu entusiasmo e alegria de sempre. Pareceu que todos os meus movimentos estavam mais aguçados. Nem sei se isso é possível, mas eu senti isso. O carinho na barriga do luke, o simples colocar de xícara em cima da pia, tudo parecia ter um sentido diferente. Logo depois eu fui no escritório e tomei o meu remédio. Em seguida, fui em direção a prateleira de livros e fiquei um tempo olhando pra ela. Fiquei pensando na vontade de pegar um livro e começar a lê-lo, mas me dei conta de que eu não iria conseguir ler em tempo curto por já ter tantas outras coisas para ler. Fui corajosa e peguei um livro. Escolhi pela finura imaginando que seria uma leitura breve e leve. Ledo engano.

Escolhi o livro Laços de família da Clarice. Passei os olhos na contracapa, no sumário, e comecei a ler do começo mesmo percebendo ser contos diferentes. Já no primeiro conto achei a linguagem pesada, difícil. Fiquei me segurando para não levantar e buscar meu celular e pesquisar os significados daquelas palavras. Fui forte e permaneci ali, sentada no sofá me mantendo longe do celular. Aos poucos as palavras foram ganhando sentido, o contexto foi me ajudando e eu acredito que passei a entender a ideia daquelas frases de palavras difíceis. O primeiro conto foi leve a partir daí, e foi uma leitura rápida. Me surpreendi com isso, e me alegrei também pois imaginei que poderia terminar aquele livro ainda hoje, ledo engano novamente.

Confesso que não lembro nada desse primeiro conto, pois o segundo me tocou tanto que tudo o que havia lido antes parecia ter lido em mandarim. O segundo conto tem o título de Amor. Confesso que não imaginei o que viria, pois, ler Clarice sempre foi um desafio pra mim, mas ao passar as páginas fui me surpreendendo cada vez mais. Fiquei muito chocada com os sentimentos e reflexões da personagem principal. Ana descrevera seu dia a dia refletindo e se questionando a todo momento tudo aquilo que sentia. Ela se surpreendeu com aquilo que sentia, talvez por nem se dar conta de que aqueles sentimentos existiam dentro dela.

Eu acho que poderia passar o dia falando sobre esse conto específico, mas eu preferi termina-lo e fazer uma pausa. Fiquei surpresa e ao mesmo tempo reflexiva. Em alguns momentos meus olhos encheram d’agua e no momento eu fiquei surpresa do porque estar acontecendo isso. Segundos depois eu percebi que eu me identificava tanto com aquilo tudo. Me senti triste pois tudo que ela pensava eu já pensei. As coisas que a tocaram já me tocaram e são coisas tão importantes, tão fundamentais à vida humana que acabamos não dando atenção ou simplesmente deixando passar como uma coisa banal e isso me deixou triste.

Me lembrou de uma frase do livro O Pequeno Príncipe: “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”... e eu acho que estou começando a entender de fato o que é essencial no mundo, pelo menos no meu mundo. Me deu medo mas ao mesmo tempo me deu vontade de sair em buscar disso.